segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Médicos versus memorizadores de livros

Na passada sexta-feira chegou-me a notícia, via Internet (mais propriamente via messenger) que um colega tinha nessa tarde, conseguido vencer o “Adamastor” do curso de medicina, o exame de anatomia, vitória conseguida à quarta tentativa, confirmação esta posteriormente dada pelo próprio. Ao que parece, para se obter tal sucesso neste exame é exigido por parte do departamento da disciplina uma extrema capacidade de “empinar”, passo a expressão, dois livros de anatomia, perfazendo assim aproximadamente 1700 páginas, sendo a dita bibliografia composta por um atlas pictográfico e um outro livro de anatomofisiologia descritiva. O dito exame é composto por duas partes, uma “escrita”, mais propriamente um interface aluno computador, composta por 16 perguntas de escolha múltipla das quais é necessário acertar 12 no mínimo para o aluno garantir a passagem à segunda fase do dito exame, desta feita, a talvez ainda mais temida “prova oral”. Devo salientar que, na parte escrita são dados aos alunos 16 minutos para a completar, o que perfaz uma média de 1 minuto por pergunta. Resumindo, o supracitado atlas, mais apropriado para responder neste caso à primeira parte do exame tem de estar em memória tipicamente binária, qual o adversário Pentium de, especulação minha, duplo processador. Este duelo, faz lembrar o tão mediático encontro Kasparov vs IBM's Deep Blue Supercomputer, da década de 90.
É perfeitamente lógico que para a futura profissão de médico, a anatomia tenha de estar bem presente na memória do profissional, não seria possível a ninguém executar com qualidade uma profissão sem conhecer o seu “conteúdo”. Contudo, e perante esta exigência/metodologia de avaliação, uma simples questão automaticamente também ela do “tipo linguagem binária de processamento rápido” me invade o pensamento, o que é um médico?! Pergunta esta que nos dias que correm me é extremamente difícil responder. Será sem dúvida um privilégio sócio-económico adquirido por uma grande maioria de profissionais da classe, que desrespeitam os que “pacientemente” esperam por ser atendidos. Por um lado, temos o sector público que pelo menos em Portugal está decadente, a espera não será tão somente pelo protagonismo que a classe tem na sociedade mas também, como nos temos apercebido pela falta de meios logísticos para a rápida observação do doente. Por outro lado, no sector privado assistimos a uma “pequena” melhoria na qualidade do serviço que, não sendo a minha intenção especular ou fazer juízos de valor generalistas, é colmatada pelo aspecto monetário per capita que é auferido pelo médico, contudo, não muda a perspectiva de muitos profissionais que ao chegarem sistematicamente atrasados aos seus consultórios privados nem um pedido de desculpa se acham no dever de dar aos seus doentes, estes que, por infelicidade própria contribuem para o dito estatuto sócio-económico daqueles.
Passando este devaneio, cabe-me voltar ao assunto que me leva a escrever este post, qual será o melhor médico?! Aquele que possui um “disco rígido” com alguns Gigabyte livres, ou aquele que através de um conhecimento dito satisfatório do ponto de vista avaliativo, gere a relação entre o que eticamente deve ser executado em prol do doente não esquecendo porém que de um ser humano se trata. É que, pelo que me é dado a ver, em vários pontos do mundo, e não querendo comparar qualidades ou métodos de ensino, onde para se ser médico tem de se conseguir uma média escolar de aproximadamente 18 valores no ensino secundário, um aluno tem de ser não mais do que um "memorizador" de livros. Após um percurso académico de 10 anos no qual se inclui uma licenciatura na área da medicina, deparo-me com uma situação caricata, quando numa determinada aula, sublinhando no entanto a grande qualidade do professor tanto como orador como no aspecto científico, lhe faço uma pergunta que cito “Qual é o conceito de saúde?”, resposta também que passo a citar e proferida com um sorriso nos lábios notório de quem percebeu claramente o sentido da minha intervenção “Não lhe sei responder a essa pergunta”...

10 comentários:

Politikos disse...

Bem-vindo à blogosfera Uchideshi.
Boas questões colocadas pelo «post»:
1.º Desadequação do modelo de ensino e até entre este e a prática: é uma questão velha e relha e que suscita sempre grandes discussões; creio que a prazo acabamos por rentabilizar algum conhecimento que nos parecem inútil «decorar»;
2.º Decadência da saúde do sector público: discordo; nunca tivemos tão bons hospitais e tão boa saúde, quer no público, quer no privado;
3.º Médias de entrada: é uma verdade e um flagelo em Medicina e noutras especialidades; a média deveria ser apenas um parâmetro e não o parâmetro como ainda acontece; a atitude pessoal é vital e deveria pesar bastante.

Anónimo disse...

Não concordo com o Ponto 2 de Politikos. Não conseguimos acompanhar o que a ciência põe ao nosso dispôr em pleno sec.XXI. Temos bons médicos, mas a prestação dos Hosp. públicos deixa muito a desejar. Veja-se o caso das maternidades. Crianças a nascer no país vizinho!!! A saúde não pode estar centralizada em Lisboa. O país não pode fechar hospitais. Deve sim na minha opinião apetrecha-los, tanto no aspecto material como no aspecto humano. Se não há mais médicos, passamos ao Ponto 3!!!!

Politikos disse...

Sodan
1 - Nunca tivemos tão boa saúde como hoje: as taxas de mortalidade infantil, por exemplo, aí estão a prová-lo; e o nosso SNS está - creio - entre os 15 melhores do mundo;
2 - Fecho de hospitais e maternidades: creio que alguns não terão sido mal fechados mas outros parece terem-no sido, como por exemplo em Chaves, em que se encerrou a maternidade pública e logo abriu ao lado uma privada; faltam explicações, falta uma política, um modelo para o SNS, falta quem veja para além dos números;
3 - Falta de médicos: deve ser atribuída em primeiro lugar aos próprios médicos que fazem uma resistência tremenda à abertura de novas faculdades.

Uchideshi disse...

Caríssimo Politikos,
Curiosa a inversão de papéis entre "postador" e comentador ;). Primeiro que tudo agradeço a recepção neste novo mundo da blogosfera, um blog com uma certa dose de amadorismo mas que conta com a sua ajuda para o "profissionalizar".
Quanto ao primeiro item do seu primeiro comentário não discordo em nada com a necessidade de memorização como método de aprendizagem, o que ponho em questão é a metodologia que muitas vezes é apenas dirigida exclusivamente neste sentido, não dando liberdade de acção ao raciocínio dedutivo. Neste caso em particular a exigência na relação memorização/rapidez de resposta parece-me um pouco absurda até!
No que diz respeito ao seu segundo ponto, não posso deixar de concordar consigo quando me diz que "nunca tivemos tão bons hospitais", outra coisa não seria de esperar, para regressão ou estagnação já bem basta a situação económica, a melhoria qualitativa é um fenómeno dos tempos. Contudo vejo-me obrigado a dar razão a Shodan no que diz respeito à centralização dos postos de saúde públicos, e este é sem dúvida um aspecto que torna o nosso país aí sim em regressão notória no aspecto quantitativo pelo menos, tanto no número de hospitais como no de recursos humanos.
Quanto às dificuldades de entrada no curso de medicina essa já é uma velha história onde me parece sim haver uma grande resistência à democratização por parte da classe, talvez com o intuito de manter o tal estatuto sócio-económico!
Deixo apenas um repto caro Políticos, será que a baixa da taxa de mortalidade infantil é uma mais valia do nosso país em particular ou da evolução da própria ciência?

Anónimo disse...

Uchideshi, para um amador neste mundo a que chamam blogosfera está a argumentar muito bem as críticas de um "profissional"na matéria - Politikos - que, para além disso, bem informado na generalidade.

Politikos disse...

Meu caro Uchideshi
Não tem nada que agradecer. É com gosto que comento no seu blogue. Não há quase profissionalização aqui na blogoesfera. Estamos aqui só pelo gosto do comentário. Por aqui, só se precisa que se seja atento, se pense, se analise, se interprete, se comente. E isso já v. é ou faz. De onde, não precisa para nada da minha ajuda.
Quanto ao comentário:
1 – Apenas comentei que a memorização de algumas matérias pode parecer inútil mas nalguns casos não o é; não devemos cair na memorização de rios e linhas de caminho-de-ferro como aconteceu no passado, mas também não podemos banir a memorização; e há matérias que são base, como essa que refere, em relação ao seu curso; e sim, concordo consigo em relação a que há, hoje em dia, certos testes/provas/frequências/exames ou que for que abusam da resposta «americana»; quanto ao tempo de resposta, talvez tenha razão, mas acha que um médico precisará, na sua prática clínica, de mais de um minuto para responder a um doente o nome de um osso, um órgão, um músculo ou o que for?!; vai ver que depois, como o outro, até já sabe onde se situa o esternocleidomastoideu ;-)
2 – Concordo consigo e com o Sodan em relação à centralização que em grande parte dos casos é feita por razões económicas mas que nos tentam vender como sendo por razões de qualidade do serviço, mas não era isso que estava em causa no meu primeiro comentário e nunca o contestei; esse foi um dado trazido pelo Sodan; falava-se antes, como se lembra, apenas em «decadência da saúde no sector público«; não tem razão sobre os recursos humanos na área da saúde que não têm parado de aumentar: os valores que temos hoje são próximos da média europeia e muito, mas muito acima dos mínimos definidos pela OMS; o que hoje existe é uma reorganização, ajustando recursos à demografia que também se altera, o que pode significar menos unidades, mas não menos recursos;
3 – O seu repto final, caro Uchideschi, colhe pouco: a baixa da mortalidade infantil resulta – claro – de evolução da ciência mas também e sobretudo do facto de o país ter acompanhado essa evolução; a ciência não evolui de igual modos para todos, como bem sabe e se vê em África e noutras paragens
Abraço

Politikos disse...

Ó Uchideshi, altere lá o fuso horário dos comentários que aparecem aqui a umas «horas malucas»; são oito da manhã em Lx e aparece 23H e penso que não será pior desactivar a «verificação de palavras» que «empata» um pouco os comentários...
:-)

Uchideshi disse...

Caríssimo Politikos,
Quanto ao seu ponto número 1, é claro que um médico não precisa de mais de um minuto para dizer ao seu doente o nome de um osso ou de um músculo, contudo note-se bem que a medicina tal como muitas outras áreas tendem para uma sectorização quase extrema, penso que já alguém lhe falou da "cultura do galináceo" ;) Pois claro que nesta perspectiva cada um saberá do "seu quintal" e disso não tenho a menor dúvida, se passarmos ao "quintal" do vizinho talvez nem com 30 minutos lá chegarão. O problema aqui é a memorização de tudo, será que essa fará assim tanta falta nos propósitos apresentados? Repare que mesmo dentro das especialidades, quando surge um caso raro torna-se difícil ao próprio médico identificar a patologia. Quanto ao esternocleidomastoideu pode ficar descansado que esse já o aprendi há já algum tempo...se tiver algum problema nesse músculo não levarei mais do que 30 segundos para lho dizer.
Quanto ao ponto número 2, não posso concordar consigo. No meu ponto de vista os recursos humanos de que dispomos não são suficientes, vejam-se por exemplo as listas de espera, que não são por falta muitas delas de infraestruturas, portanto os números da OMS e UE, pouco me dirão, nesse aspecto parece-me muita teoria e pouca prática. As estatísticas valem sempre o que valem.
Quanto ao seu ponto número 3 meu caro amigo, surpreendeu-me ter posto a "bitola" tão baixa, não é de todo o seu hábito!! É que comparar a "lanterna vermelha da Europa" mesmo com os "topos de gama" africanos, excluindo como é lógico a África do Sul, é um pouco redutor, é que mesmo entre estes e aquele a "décalage" ainda é grande.
Por último, agradeço a chamada de atenção, ficou registada e certamente logo que possa tentarei rectificar esses pontos, é que por aqui o tempo ainda escasseia!
Um abraço

Anónimo disse...

Não quero ser o "fiel da balança", mas que a resposta é boa, lá isso é....

Politikos disse...

Caro Uchideshi
Não vamos encetar aqui uma querela epistemológica sobre os saberes ou nunca mais sairíamos daqui. Deixo, ainda, de lado uma nova frente que abriu com este seu comentário: a da especialização. Se abrimos novas frentes sem encerrarmos as anteriores acabamos por nos perder. Vamos, então, recuperar o fio da meada:
Memorização – falo-lhe, no geral, e de acordo com a minha experiência; ainda há-de agradecer aos que o obrigaram a memorizar algumas coisas que agora lhe podem parecer supérfluas ou em excesso;
Recursos humanos – aquilo que chama a «teoria» da OMS e da UE são números universalmente aceites; acha que as listas de espera são consequência da falta de médicos?! Então porque é que não há listas de espera nos hospitais privados?! Sabe ou não sabe que as «listas de espera» nos hospitais públicos diminuíram substancialmente ou quase se erradicaram assim que se estabeleceram acordos com clínicas e com médicos em regime privado ou quando se pagou aos médicos para trabalhar mais no sector público, através de regimes de exclusividade ou outros incentivos; o problema não é, por isso, de recursos; talvez seja, então, de perguntar porque é que isto acontece e se ligar isto ao tal estatuto socioeconómico de que falou, verá que chega rapidamente às razões;
Taxa de mortalidade infantil – apenas disse, em resposta ao repto, que a ciência evoluiu e alguns (Portugal) acompanharam e outros (África) não! A diminuição da taxa de mortalidade em Portugal é sobretudo consequência do desenvolvimento do país e não tanto da evolução da ciência.
Abraço
P.S. - Já se percebeu que o Sodan ou Shodan é tendencioso. Entra na polémica e depois sai e fica a assistir... ;-)